14.5.14

21 gramas (Áudio)






Encostei o meu ouvido ao seu peito, naquele preciso momento em que suspirou. Senti a alma desprender-se do corpo. A pairar sobre o quarto. Sobre o seu corpo velho e sobre mim. Ali paradas. Sem saber o que se seguia. Sem saber a qual das duas cabia o passo seguinte. Aguardei, com cerimónia, uns minutos. Nunca me tinha passado a morte pelas mãos. Nem sabia se era aquilo a morte: simplesmente morrer. Largar o último quinhão de ar. Ficar inerte. Abandonar um corpo usado. Seguir com a alma para outras vidas. Juraria, se preciso fosse, que lhe vi a alma despedir-se do corpo, como uma neblina levantada com um sopro. Juro que aquela alma viveu além da morte. Eu vi.

Olhei-lhe o rosto antes da partida. Olhei depois. Não era a mesma pessoa. Mas eu tive-lhe o mesmo amor. Era o corpo da mulher velha, que deu vida à vida que me fez viver. Amei-a na despedida como nunca terei amado na chegada. Em todo o caminho. Amei-a mais depois de um adeus que ela nunca chegou a saber que lhe fiz.
Morrerei eu, um dia, e o arrependimento de um amor tardio não me salvará. Talvez, quando a minha alma chegar até à sua, lhe possa dizer o quão agradecida estou por me deixar assistir à sua morte. Por ter esperado por mim para a ver morrer.
Ela amou-me mais ali. E não me doeu. Agradeci-lhe a partilha deste momento comigo. A sós.

Depois vieram as outras pessoas. Foi-se o nosso momento, o nosso silêncio. Vieram os rituais em que, sei, não acreditava. Choraram pessoas que, sei, não a amavam. Naquele dia que entregámos o seu corpo velho e magro, foi-se a crença de um céu e de um Pai que nos acolhe. Perdeu-se a magia. A história passou a ser outra. Levaram-nos a alma e deixaram-nos cá o corpo sem significado. Deixaram cá aquilo de que não se conseguiram livrar. Deixaram-nos um corpo para mandarmos para a terra. Para o lixo. Mas a nós também nos custa, sabiam?


[Soube que tinha morrido quando lhe olhei o rosto e vi que já não era ela quem ali estava. Restou apenas um corpo. Foi-se a alma. Não se sabe para onde.]



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